Entrevista: “Não podemos aceitar que o Marajó seja o último vagão do Brasil”
Ao completar três anos de ações no Arquipélago do Marajó, o Instituto Peabiru inicia uma nova fase do Programa Viva Marajó e faz uma avaliação dos resultados dos primeiros passos do trabalho. Nesta entrevista do mês de março, o diretor da ONG, João Meirelles Filho, fala sobre as atividades desenvolvidas e os desafios de uma das regiões brasileiras com menor IDH e problemas crônicos de falta de acesso à direitos.
O Programa Viva Marajó nasceu para apoiar a candidatura do arquipélago como Reserva da Biosfera pelo Programa Homem e Biosfera, da UNESCO, porém foram identificadas inúmeras prioridades, ou seja, é preciso fazer a “lição de casa”. “Esta lição de casa significa ordenamento fundiário, reconhecimento de direitos cidadãos de quilombolas, ribeirinhos e populações tradicionais”, destaca Meirelles.
Abaixo, o diretor responde a perguntas sobre o Viva Marajó e a agenda de trabalho da ONG para a região.
1. Após três anos de trabalho desenvolvido a partir do Programa Viva Marajó, quais foram as principais conquistas e aprendizados?
João Meirelles – A principal conquista é o fortalecimento da capacidade da sociedade civil em discutir e reivindicar seus direitos básicos. Em três anos de trabalho, envolvendo dezenas de pessoas, ao realizarmos mais de uma centena de encontros públicos, um diagnóstico socioeconômico, um mapa fundiário e um documentário em vídeo, ficou patente que o Marajó segue excluído das prioridades das políticas públicas. Ainda que o governo federal, com o apoio do estadual, haja lançado o Plano Marajó e constituído o Território da Cidadania do Marajó, pouco foi feito efetivamente pela região – fala-se muito, faz-se pouco. Parece que o Marajó está sempre em segundo, terceiro, plano. Iniciamos nosso trabalho em prol da candidatura do Marajó como Reserva da Biosfera pelo Programa Homem e Biosfera, da UNESCO, a convite da SEMA-PA e Fundo Vale. No entanto, verificamos que antes de propor tal diploma socioambiental, é necessário realizar a lição de casa, e esta lição de casa significa ordenamento fundiário, reconhecimento de direitos cidadãos de quilombolas, ribeirinhos e populações tradicionais e ampla discussão sobre o que significam unidades de conservação, assentamentos agroextrativistas e direitos de povos e comunidades tradicionais.
2. O Marajó é um território complexo, que vive séculos de exclusão em muitos sentidos. Como o Instituto Peabiru trabalha para chamar a atenção para os problemas crônicos de falta de acesso à direitos no arquipélago?
João Meirelles – Em primeiro lugar, trabalhamos sempre em parceria com as organizações locais. A constituição do Território da Cidadania resultou no Colegiado Territorial do Marajó, reunindo cerca de sessenta e quatro organizações públicas e privadas. É com este conjunto de atores locais – associações locais de produtores, sindicatos de trabalhadoras e trabalhadores rurais, associações culturais, colônias de pesca, organizações de base etc. – que o Instituto Peabiru se articula, além de partilhar os desafios de pesquisa, especialmente na área de cadeias de valor, com organizações de pesquisa, como o Museu Paraense Emílio Goeldi e a Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA). Para discutir a pauta Marajó a nível estadual, realizamos 23 “Dias do Marajó” em Belém, em parceria com o SESC Boulevard e financiado pelo Fundo Vale e a Vale, sobre diversas temáticas. E muitos destes eventos resultaram em alianças, em decisões importantes, como aquele que tratou do impacto da chegada dos arrozeiros no Marajó.
3. Por se tratar de tantas demandas, o que norteia as ações da ONG no Marajó?
João Meirelles – Nossa agenda é a agenda da sociedade civil. Por metodologias científicas, como o diagnóstico socioambiental, a que carinhosamente denominamos de “Escuta Marajó”, onde realizamos mais de 400 entrevistas e, posteriormente, discussões em todos os municípios do Marajó, relevamos as prioridades regionais. O apoio aos encontros do Colegiado Territorial do Marajó e as cartas produzidas nestes eventos, bem como as reuniões com os diversos órgãos da administração públicas, resultam em uma agenda objetiva e bem definida, especialmente em questões como a educacional, da saúde, do ordenamento fundiário e do apoio à produção. Neste sentido, ficou patente que a questão que precede as demais – e onde o estado é mais ausente – é o ordenamento fundiário e a garantida dos direitos cidadãos, adquiridos na Constituição Federal Brasileira e legislação subsequente. O ICMBIO, INCRA e a Superintendência do Patrimônio da União – SPU realizaram importante trabalho que alcança hoje cerca de 25% do Marajó. E os outros 75%? Como fica a segurança fundiária da maioria dos marajoaras?
4. O ordenamento fundiário é certamente importante na agenda, porém quais são os outros desafios para este quarto ano do Programa Viva Marajó?
João Meirelles – A partir de um edital público do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), em parceria com o Ministério do Meio Ambiente, a Cooperação Alemã GIZ e diversas organizações locais, empresas e órgãos de pesquisa, estamos empenhados em discutir e fortalecer a capacidade local das cadeias de valor do açaí e da andiroba. Uma segunda agenda é o monitoramento das políticas públicas perante a proposta do governo estadual e da Federação da Agricultura e Pecuária do Pará (FAEPA) de plantio de 300 mil hectares de arroz na região. Esta ação é realizada em parceria com o Colegiado Territorial do Marajó, a Diocese de Ponta de Pedras, a Igreja Católica e contribui ao trabalho dos Ministérios Públicos Estadual e Federal que estão preocupados com o impacto social, ambiental e econômico da iniciativa. Uma terceira agenda é prosseguir nas diversas propostas relacionadas à criação de unidades de conservação, assentamentos agroextrativistas e outras modalidades de ordenamento fundiário. O que não podemos aceitar é que o Marajó seja o último vagão do Brasil, que entre os dez municípios mais pobres do Brasil, seis sejam do Marajó.
5. Contribuir para a candidatura do Marajó como Reserva da Biosfera, da Unesco, ainda faz parte dos objetivos? Como isso pode ser feito?
João Meirelles – Com certeza, primeiro o governo do estado do Pará precisa cumprir o que determina, há 23 anos a Constituição do Estado – que o Marajó seja efetivamente uma Área de Proteção Ambiental. Afinal, os marajoaras se posicionam com orgulho como tais e merecem atenção. O Marajó é uma das regiões de mais rica e autêntica cultura do Brasil, possui o maior conjunto de sítios arqueológicos da Amazônia – e todos estão desprotegidos; e é uma das regiões de maior biodiversidade no Planeta – se há uma região que merece este título é o Marajó. É a única região que possui duas espécies de peixe-boi e provavelmente tenha o maior número de espécies de quelônios (tartarugas) do planeta, e certamente uma das maiores biodiversidades em termos de peixes, mas é preciso investir em pesquisa científica. O Marajó também precisa receber outros títulos internacionais, como importante área úmida do planeta – a convenção RAMSAR. A criação de unidades de conservação é vital, tanto para proteger o patrimônio imaterial, o patrimônio arqueológico e a biodiversidade. Esperamos que a SEMA-PA agilize a criação das três unidades que se propuseram, que o ICMBIO amplie as unidades existentes; e que o Serviço Florestal Brasileiro (SFB) e o ICMBIO reconheçam que a Floresta Nacional de Caxiuanã merece que boa parte seja destinada como unidade de proteção integral. Afinal, ali em Caxiuanã esta uma das duas únicas estações cientificas da Amazônia Brasileira – a Estação Cientifica Ferreira Penna, do Museu Goeldi. Além disto, pelo Marajó passam 25% das águas de todos os rios do Planeta, mas parece que não levamos isto a sério pois 75% dos marajoaras não tem água tratada e praticamente não há coleta de esgotos. E se há algo a se diplomar com a reserva da biosfera é um arquipélago de unidades de conservação que abarque, não apenas as terras firmes e inundáveis, como as áreas fluviais, costeiras e marinhas. O Marajó deveria ser a Reserva Biosfera das Águas Doces.