Dia do Berto: mito ou realidade ignorada por órgãos públicos e elos da cadeia do Açaí?

Por Instituto Peabiru
Publicado em 14/07/2015
retirada açaí - Alan Kardek (2)

Técnicas rudimentares de retirar o açaí ainda são utilizadas até hoje, colocando em risco a saúde do extrativista. (Foto: Alan Kardek)

No folclore marajoara, há uma lenda sobre um ser nefasto, responsável por causar os mais diversos acidentes na colheita do açaí. Contam os caboclos ribeirinhos que o verdadeiro responsável por “pretejar” o cacho do açaizeiro (Euterpe olereacea)  é uma entidade conhecida como “Berto”.

O “Dia do Berto” é o início da safra do fruto amazônico e acontece em 24 de agosto, quando o Berto é solto no mundo e vai até as ilhas mijar no açaizeiro. Por ser um dos muitos apelidos dados pelo caboclo ao Diabo, neste dia é proibida a colheita do açaí, viagens e muito menos, saídas para a mata. A superstição ganha mais força com os diversos relatos de acidentes com pessoas que desafiam a cultura popular e se aventuram no açaizal.

No entanto, o folclore amazônico reflete uma problemática até então pouco discutida – as condições de trabalho do extrativista ribeirinho de açaí. Por marcar o início da safra – o Dia do Berto –, também marca o início de uma atividade cuja condição de segurança de trabalho é de altíssimo risco. Daí, não seria equivocado em falar que o Berto está solto por todo o período da colheita do açaí.

Desde tempos imemoriais, sobe-se no açaizeiro para coletar cachos de frutos, empregando técnicas rudimentares de fabricar uma peconha a partir da própria folha e, levar um objeto cortante para retirar o cacho. Esta é uma atividade que o ribeirinho aprende desde criança, como parte das tradições da socialização ao trabalho, relacionadas ao manejo de recursos naturais de seu ambiente florestal e aquático. Entretanto, na última década, com o crescimento exponencial do mercado do vinho (polpa) de açaí, a coleta passou a atender, não apenas o consumo da própria família ou localidade, ou o limitado mercado regional, que consumia açaí fresco, in natura, para se transformar em uma cadeia de valor de interesse global.

Este impulso econômico reflete diretamente no aumento da atividade extrativista e, por consequência, no maior número de acidentes de trabalho. É preciso considerar que, diariamente, na safra, dezenas de milhares de pessoas, no Amapá, Amazonas e, principalmente, no Pará, arrisquem suas vidas, ao subir nos açaizeiros para coletar cachos com frutos de açaí.

A questão é que a maioria destas pessoas, os peconheiros, são jovens, sobem sem qualquer equipamento de proteção individual (EPI), e com uma faca ou facão, sem bainha, entre seus dentes, ou enfiando em seu calção, que, aliás, é a única vestimenta utilizada na maioria dos casos. Não é difícil que este coletor salte de um açaizeiro a outro, arriscando-se ainda mais.

Em rara matéria na imprensa, intitulada “Acidentes em açaizeiros preocupam os médicos” –, o Diário do Pará, em 16.7.2012, alertava, sobre os dados do Dr. Guataçara Gabriel,  chefe do SAMU e do Hospital Metropolitano de Belém – Cerca de 18% dos traumas provocados por queda, registrados no Hospital Metropolitano de Urgência e Emergência (HMUE), são de extrativistas que despencam dos açaizeiros na hora de colher o fruto [DIARIO DO PARA, 2012].

Do ponto de vista econômico, esta externalidade, como outras de caráter ambiental (monocultura do açaí), ou não consideradas, ou são minimizadas. Isto para que não impacte no preço do produto. O resultado é o que todo o risco da atividade fica com o produtor familiar e principalmente, os jovens. Os demais elos da cadeia de valor – transportadores, processadores (batedores locais e industrias, de diferentes dimensões), atacadistas e varejistas – não reconhecem este risco. E, mais grave, o tema é totalmente invisível ao consumidor. Há uma visão romântica sobre subir no açaizeiro e que, não corresponde à realidade do dia-a-dia do coletor e aos riscos de quebra de árvore, picada de insetos, cobras, escorpiões etc..

A parceria entre o Instituto Peabiru e o Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região (TRT8) é uma tentativa de enfrentamento desta problemática de maneira, ao realizar um diagnóstico sobre a situação do coletor de açaí, procurando responder, entre outras questões:

  • Que tipo de riscos correm atualmente os peconheiros? Há registros de acidentes? Invalidez? Óbitos? Há sub-notificação? Em que circunstâncias se deram? O que poderia ter sido feito para evitar tais riscos e acidentes?
  • Como tornar a atividade de coleta de açaí em seu ambiente natural como atividade segura? E, que garanta a sustentabilidade financeira de profissionais e famílias?
  • Quantos são os peconheiros? Coletam para quais fins (segurança alimentar, comercialização)? Quantos participam da cadeia de valor do açaí? Quantos são jovens e, em que faixa etária?
  • Qual o grau de informalidade na profissão?
  • Qual a participação da mulher neste processo? Há diferença de pagamento para mulheres? Jovens ganham menos que adultos?
  • Que técnicas já identificadas podem garantir maior segurança? O manejo contribui para diminuir os acidentes, já que se prevê a extração das palmeiras mais altas e antigas? Há invento de mecanismos, estes podem ser utilizados em maior escala?

Para o diretor geral do Instituto Peabiru, João Meirelles Filho, estas são problemáticas a tratar  não apenas com o próprio extrativista, mas com todos os elos da cadeia de valor, inclusive o consumidor final. “Ao aumentarmos o conhecimento sobre a natureza da coleta do açaí, nas questões relacionadas à segurança e saúde do trabalhador, as relações da atividade infantis e de jovens na cadeia de valor e avaliar a informalidade das relações de trabalho no setor, podemos iniciar este debate e propor soluções, juntamente com o ribeirinho – a parte mais interessada”, analisa Meirelles.

A questão é que as condições de trabalho na Amazônia como um todo, – e não apenas no tema da colheita do açaí –, não assegura o bem estar de suas populações, especialmente do meio rural. Entre os resultados mais visíveis estão o aumento da exclusão, especialmente de povos e comunidades tradicionais associado ao desmatamento sem precedentes na história da humanidade. E uma das razões que torna o produto amazônico barato ao brasileiro e ao mundo é a alta taxa de informalidade nas relações de trabalho e nas questões fiscais.

“As cadeias de valor tradicionais, relacionadas ao extrativismo e à agricultura familiar, apresentam desafios como a informalidade nas relações de trabalho, a alta insegurança para a saúde no manejo de recursos naturais. Isto ocorre especialmente em cadeias de valor que crescem rapidamente, como é o caso do açaí, cuja cadeia emprega dezenas, ou mesmo centenas de milhares de pessoas – os números são precários”, alerta João Meirelles.

Uma pergunta feita de imediato na questão do açaí, por exemplo, levanta dúvidas sobre o que falta para que sejam desenvolvidas ferramentas e tecnologia que garantam a segurança do produtor. A verdade é que este se trata de um tema invisível, não discutido. “Quando se mostra estratégias de subir com mais segurança trata-se como uma curiosidade, uma brincadeira. Em segundo lugar, os órgãos responsáveis não se preocupam com o tema. Só daí em diante é que poderemos avançar”, diz João Meirelles.

Por fim, esperemos que o Berto seja condescendente neste agosto e não faça estripulias com os meninos e meninas da Amazônia que sobem nos açaizeiros.

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