Criação de abelhas sem ferrão recebe autorização de manejo inédita
A legalização garante o fortalecimento da cadeia comercial de mel e derivados da meliponicultura na Amazônia
Pela primeira vez, povos e comunidades tradicionais, indígenas e quilombolas do Pará e do Amapá, produtores de mel de abelhas sem ferrão, conquistam a regulamentação da atividade da meliponicultura junto às secretarias de meio ambiente estaduais e o IBAMA. Um avanço para a comercialização certificada de um produto raro, de alta qualidade, e que está ganhando alto valor de mercado.
A Autorização de Manejo (AM) e a inclusão no Sistema de Gestão de Fauna (Sisfauna) dos meliponários ligados aos projeto Néctar da Amazônia, do Instituto Peabiru, é resultado das ações realizadas nos últimos três anos com o financiamento do Fundo Amazônia (BNDES).
As melíponas são animais silvestres da fauna brasileira e, segundo a legislação, produtores que possuem mais de 49 caixas de abelhas precisam do Cadastro Técnico Federal (CTF), da AM e da inclusão no Sisfauna para comercializar o mel, derivados e outros insumos, como colônias de abelhas e caixas de reprodução.
Hermógenes Sá, diretor executivo do projeto, conta que uma das principais dificuldades da legalização é que o Sisfauna não contempla ainda as especificidades das abelhas sem ferrão. “As exigências de monitoramento de indivíduos, rastreabilidade e informação da origem de cada abelha não são compatíveis com insetos sociais, mas sim com tartarugas, onças e outros animais silvestres de grande porte”, explica.
Uma outra barreira para as comunidades é que a maioria dos pequenos agricultores são de baixa renda e vivem em territórios isolados. “É muito difícil o acesso a computadores e escritórios locais de órgãos públicos habilitados para fazer os cadastros”, destaca Sá.
Campanha – Para que os produtores de mel de abelhas sem ferrão do projeto Néctar da Amazônia pudessem trabalhar de acordo com a legislação, o Instituto Peabiru fez uma campanha pela autorização de manejo da meliponicultura para produtores tradicionais. O trabalho foi feito junto às secretarias de meio ambiente do Pará e do Amapá para estabelecer ritos simplificados e céleres no Sisfauna, sem custos para os pequenos produtores.
Umas das conquistas mais relevantes foi a isenção pelas SEMAS-PA de taxa de autorização e dispensa de apresentação do Cadastro Ambiental Rural (CAR), uma vez que a regularização fundiária não chegou a muitos desses territórios.
O Instituto Peabiru trabalha hoje em cooperação com a Embrapa Amazônia Oriental para subsidiar um projeto de lei estadual, em processo de discussão na Assembleia Legislativa do Pará, que visa a criação de normas simplificadas para a autorização da produção de mel de abelhas sem ferrão, a exemplo do que já ocorre nos estados do Rio Grande do Sul e da Bahia.
Há dez anos desenvolvendo aprendizados e conhecimentos do manejo racional das abelhas sem ferrão na Amazônia, o Instituto Peabiru defende que cada Estado tenha autonomia para criar um sistema próprio de autorização de manejo. “É fundamental desenvolver um método de regularização da meliponicultura, utilizando o Sisfauna, mas que leve em conta as características de cada região”, conclui Sá.
Polinização e geração de renda para comunidades tradicionais
A regulamentação torna possível que a produção de mel de abelhas sem ferrão seja comercializada com todas as certificações federais. “É um passo importante que abre caminhos para o fortalecimento de uma cadeia de valor do mel. Além de oferecer renda para as comunidades, traz todos os benefícios da polinização para a manutenção e a recuperação de ambientes naturais”, defende João Meirelles, diretor do Instituto Peabiru.
O projeto Néctar da Amazônia, desenvolvido pela organização social, trabalha hoje com cerca de 100 pequenos produtores de 26 comunidades em dois Estados. No Amapá, são quatro grupos indígenas do Oiapoque e comunidades quilombolas de Macapá. No Pará, o trabalho de capacitação em meliponicultura e organização comunitária é realizado com agricultores familiares de Curuçá, no Nordeste Paraense, e ribeirinhos dos municípios de Monte Alegre e Almeirim, na região do Baixo Amazonas.
O projeto vem se expandindo para a Ilha do Marajó, no município de Curralinho, em uma cooperativa de coletores de açaí – Sementes do Marajó. “As abelhas sem ferrão são as principais polinizadoras do açaí, o que contribui para o aumento da produção e a qualidade do fruto”, destaca Meirelles.
João Meirelles faz parte de um grande movimento de empreendedores sociais e pesquisadores que divulgam a importância dos enormes serviços ambientais da meliponicultura para o combate ao desmatamento e as mudanças climáticas na Amazônia.
“O mel de abelhas sem ferrão é o mel da conservação da biodiversidade. O produto gera renda e segurança alimentar para famílias em situação de exclusão e as abelhas, com a polinização, contribuem para a recuperação da floresta, maior produção de frutos e dispersão de sementes, além de evitar o fogo”, argumenta Meirelles.
Para Vera Lucia Imperatriz-Fonseca, pesquisadora do Instituto de Biológicas da Universidade de São Paulo e do Instituto Tecnológico Vale e parceira do Instituto Peabiru, recuperar os ambientes degradados é um enorme desafio e as abelhas sem ferrão são soldados dessa recuperação. “Incentivar a meliponicultura por agricultores familiares e produtores tradicionais é uma resposta ao alerta mundial de desaparecimento de abelhas, causado principalmente por alterações ambientais e modificações nas condições da água e do clima”, aponta.
Segundo Meirelles, o grande objetivo do projeto Néctar da Amazônia é tornar as abelhas sem ferrão parte da rotina de agricultores familiares e de comunidades tradicionais da região. “A estimativa é de que existam mais de 1 milhão de famílias rurais em situação de exclusão na Amazônia. Se as abelhas sem ferrão chegam a estes quintais e roças, ampliam-se todos esses serviços ambientais da polinização, de geração de renda e segurança alimentar”, aponta.
Produção e comercialização do mel de abelhas sem ferrão
No total, as comunidades do projeto Néctar da Amazônia, do Instituto Peabiru, trabalham com cerca de 5 mil colmeias de abelhas sem ferrão, que em um ano podem se multiplicar em 20 mil. Nas comunidades de Monte alegre e Almeirim, no Pará, a previsão de safra para este ano é de meia tonelada de mel.
São números insignificantes se comparados aos da apicultura (produção de mel de abelhas estrangeiras, com ferrão, as abelhas Apis). Segundo o pesquisador Fernando Oliveira, um dos principais estudiosos das abelhas sem ferrão no Brasil e consultor do projeto Néctar da Amazônia, existem menos de 50 mil colmeias de abelhas sem ferrão manejadas no Brasil, e a maioria dos produtores tem apenas algumas poucas caixas.
“Iniciativas como as do Instituto Peabiru são importantes porque expandem os conhecimentos e aprendizados sobre a meliponicultura, apoiam a reprodução das abelhas e geram novas oportunidades para pequenas comunidades rurais”, destaca Oliveira.
A pequena produção de mel das abelhas sem ferrão torna-o um produto raro. Além disto, este mel tem características diferentes do mel das abelhas Apis. Segundo o pesquisador, trata-se de um mel mais aquoso e com menos açúcar, o que resulta em um produto com muitas variedades de sabores. “É um ingrediente que ganha status de iguaria e atrai grandes chefs da gastronomia brasileira e deve chegar até o consumidor pela sua importância ambiental e social”, completa o pesquisador.
De acordo com Hermógenes Sá, do Instituto Peabiru, o quilo de mel de abelhas sem ferrão vai custar em torno de R$ 100,00 fracionados em garrafas de 150 gramas. O próximo passo do projeto Néctar da Amazônia é completar um fluxo regular de comercialização. “O mel de abelhas sem ferrão sempre foi comercializado de modo informal, é a primeira vez no Brasil que a cadeia de valor é plenamente legalizada”, aponta.
Dentre as ações apoiadas pelo Fundo Amazônia (BNDES), o mel dos produtores do projeto Néctar da Amazônia será beneficiado em associação com uma fábrica de mel que possui toda a infraestrutura e regulamentação. “O envasamento e a rotulagem seguem todas as exigências federais para a comercialização de um produto agroalimentar”, explica Sá.
“Com a legalização, a ampliação da produção e o beneficiamento do mel em locais apropriados a receber os selos de inspeção, seja municipal, estadual e federal, o produto pode chegar ao mercado com segurança e qualidade”, conclui.
Para saber mais, acesse a página do Projeto Néctar da Amazônia.