Direitos e segurança do trabalho na cadeia de valor do açaí
O trabalho precário e o trabalho infantil na colheita do fruto impõem ações coordenadas do setor produtivo para resolução de problemas estruturais e garantia de direitos
Introdução
O açaí tradicionalmente compõe a dieta alimentar das populações na Amazônia Oriental, particularmente das populações ribeirinhas, que dispõem de açaizais nativos de várzea no entorno de suas casas. O fruto é item básico de segurança alimentar e ajudou de forma efetiva parte da população local no enfrentamento da fome.
O consumo do açaí também alcança, em grandes volumes, as zonas urbanas da região e, recentemente, observa-se crescente demanda de mercados também em nível nacional e mundial, a partir da produção de indústrias de alimentos e cosméticos. Atualmente, a produção e a extração do açaí é também fonte de parte significativa da renda anual das comunidades extrativistas na Amazônia Oriental, mobilizando famílias inteiras na coleta, movimentando a venda em portos e feiras locais e o abastecimento de fábricas e batedores em cidades próximas. Com a produção anual de mais de 1 milhão de toneladas do fruto, o que corresponde a aproximadamente 95% da produção nacional, o estado do Pará desponta como o maior produtor de açaí do mundo.
Nossa atuação no tema
O Instituto Peabiru trabalha há 16 anos com a cadeia de valor do açaí, na organização socioprodutiva de grupos comunitários na Amazônia e na produção de conhecimento sobre esta complexa cadeia de valor baseada na Amazônia. É o caso do projeto “Fortalecimento produtivo e organizativo nos Rios Urinduba e Araraiana” realizado em Ponta de Pedras, no Marajó, financiado pelo Instituto Louis Dreyfus. Como parte do projeto, foram realizadas oficinas de associativismo entre fevereiro e março de 2020, reuniões de negociação de açaí com indústrias processadoras, oficina de estabelecimento de protocolo comunitário de comercialização, monitoramento da safra de açaí 2020 (agosto de 2020 a janeiro de 2021), oficina de boas práticas financeiras e de formação de preço de produtos. Durante a safra de 2020, as comunidades iniciaram os processos de comercialização conjunta, tendo uma delas, a do rio Urinduba, conseguido vender parte de sua produção para a indústria. Dados do monitoramento dessa comercialização demonstraram que houve um incremento na renda dessas famílias a partir do momento em que conseguiram alcançar melhores preços em seus produtos e diversificar seus compradores. O trabalho do Instituto Peabiru na cadeia do açaí tem produzido materiais de referência sobre o tema. Em maio de 2016, a convite do Programa Trabalho Seguro, do Tribunal Regional do Trabalho TRT-8, o Peabiru realizou, em parceria com a Fundacentro, e de produtores locais do município de Curralinho, Marajó, um diagnóstico das condições de trabalho na cadeia produtiva do açaí, culminando na publicação do estudo “O peconheiro” Diagnóstico das condições de trabalho do extrativista de açaí” e resumido no vídeo Trabalho seguro e açai – A rotina do extrativista ribeirinho.
Ainda em 2016, como resultado de mapeamento realizado com o PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), o Instituto Peabiru publicou o livro “Planejamento estratégico para o fortalecimento do arranjo produtivo local da cadeia de valor do açaí do Marajó”. A publicação é fruto de uma construção coletiva e territorial com o objetivo de fortalecer a cadeia de valor do açaí no Marajó, no âmbito do Projeto BRA/08/012.
Em 2020, no ápice da pandemia de covid-19, que afetou duramente as famílias cuja renda deriva da venda do fruto, o Peabiru publicou artigo especial sobre os impactos relacionados à ”Pandemia, agricultura familiar e segurança alimentar na Amazônia – Riscos da COVID-19 na cadeia de valor do açaí”. O artigo buscou registrar e apontar soluções perante os riscos decorrentes da pandemia, identificados na cadeia de valor, principalmente em relação aos produtores da base da cadeia.
Desde 2019, o Peabiru também participa da rede de atores da iniciativa Diálogos Pro-açaí, que vem abrindo espaço para o debate de questões centrais referentes à produção, comercialização e organização setorial para fomento à cadeia produtiva do açaí. A iniciativa é organizada pelo Projeto Mercados Verdes e Consumo Sustentável, parceria entre o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) e Cooperação Alemã para o Desenvolvimento Sustentável (GIZ), com apoio da WWF-Brasil, e conduzido pelo Instituto Terroá e Consórcio EcoConsult/IPAM. Como membro da rede, o Peabiru foi convidado para apresentar ao grupo as reflexões e principais resultados do diagnóstico sobre as condições de trabalho na cadeia.
O trabalho precário na cadeia do açaí
Na cadeia do açaí a colheita é feita de forma manual, com a subida dos apanhadores (peconheiros) nas palmeiras, que têm troncos finos e podem chegar a 20m de altura. Grande parte da colheita é feita de forma rudimentar, sem o uso de equipamentos de proteção e segurança (EPI). Os acidentes cotidianos decorrentes dessa prática ainda são invisibilizados, sub representados nas estatísticas oficiais. Ainda, é grande o envolvimento de menores de idade na colheita e manuseio do fruto.
Conforme demonstrado em nossas publicações e de demais atores, da academia e do terceiro setor, a precariedade do trabalho de dezenas de milhares de coletores que atuam na colheita do açaí não é tema novo. Contudo, a questão tem despontado como tópico de interesse de importantes veículos nacionais e internacionais. É o caso da recente matéria do jornal estadounidense Washington Post, que destacou o trabalho infantil na cadeia do açaí e do jornal The Intercept Brasil, que em dezembro de 2019 dedicou reportagem especial ao mesmo tema.
Soma-se ao conteúdo jornalístico produzido sobre a precariedade do trabalho, a reportagem do Jornal Record sobre os riscos do trabalho na colheita do açaí, veiculada ainda no ano de 2018.
O que fazer
O relatório do “Diagnóstico das condições de trabalho do extrativista de açaí” aponta caminhos para o enfrentamento conjunto dos problemas associados ao trabalho na cadeia do açaí. Aqui atualizamos as recomendações sobre os caminhos a seguir no sentido de endereçar o tema do trabalho precário e do trabalho infantil ligados à produção do açaí.
Para discutir o trabalho infantil e juvenil
- Oficinas com as comunidades produtoras para a compreensão da legislação e os riscos do trabalho infantil e juvenil, e como se adaptar aos desafios da agricultura familiar;
- Eventos com as autoridades públicas e especialistas (Ministério público do Trabalho, academia, UNICEF, movimentos sociais etc.) para debater a questão e definir metas claras para os próximos anos;
- Discussão com os elos da cadeia de valor que adquirem o açaí sobre como enfrentar a questão e estabelecer metas e prazos para cumprimento.
Para evitar acidentes
- Oficinas de capacitação e construção coletiva, que envolvam os apanhadores de açaí (peconheiros) na definição de protocolos de segurança local, como a definição de roupas (calça, camisa com manga, chapéu, luvas etc.), calçados e equipamentos (bainha para facão, cordas de segurança etc. que protejam o(a) trabalhador(a), e permitam o exercício adequado da profissão, a subida nas árvores e a circulação nas áreas florestais e inundadas;
- Oficinas de manejo seguro dos açaizais – o que resultaria em substantiva diminuição da altura da árvore e a “limpeza” das áreas de circulação;
- Adoção de protocolo pelas autoridades públicas e a sua divulgação junto à cadeia de valor e cobrança dos diferentes atores para a sua adoção;
- Estruturação e acompanhamento de indicadores de segurança no trabalho e saúde pública para a cadeia de valor;
- Capacitação de coletores e elos associados na base da cadeia de valor em técnicas de primeiros socorros e procedimentos para atendimento no sistema de saúde pública;
- Assistência técnica e extensão rural (ATER), e as políticas públicas a esta relacionadas, que considerem as questões de segurança no trabalho;
- Crédito ao produtor associado a compromissos nas questões acima levantadas.
- Inclusão das normas de segurança nos diferentes processos de certificação da atividade.
Responsabilização da cadeia de valor
- Eventos de debate do poder público com os demais elos da cadeia de valor – compradores de açaí, em suas diversas escalas (indústria, batedores, governo) – para definir parâmetros mínimos;
- Revisão do processo de pagamento do fruto para a base da cadeia para que, minimamente, inclua de alguma maneira a remuneração do fornecedor do fruto (o peconheiro e a família produtora) – no que se repassa recursos para garantir que o produtor cumpra um protocolo mínimo de uso de roupas e equipamentos de proteção individual adequados (a ser definido) e de cumprimento da legislação trabalhista (especialmente no que se refere ao trabalho infantil); e,
- Informação ao consumidor sobre as políticas dos elos da cadeia relacionadas à segurança no trabalho e o trabalho infantil, que permitam a sua verificação (rastreamento).
Outras recomendações podem ser acessadas integralmente no documento de resultados do “Diagnóstico das condições de trabalho do extrativista de açaí”.
Contribuições do Peabiru
Reconhecendo seu papel como organização da sociedade civil atuante em cadeias de valor da Amazônia, o Instituto Peabiru reforça o seu interesse e disponibilidade para a construção de projetos, facilitação de diálogos e implementação de ações para o alcance de melhores práticas relacionadas ao trabalho e demais aspectos sociais na cadeia produtiva do açaí. Através de articulações com a academia, o poder público e o setor privado, buscamos contribuir para a melhoria da qualidade de vida do extrativista de açaí ao propor melhorias para a maior segurança no trabalho e a eliminação do trabalho infantil. Para os empreendimentos que têm na sua base a produção do açaí, bem como outros atores do setor privado, sinalizamos as oportunidades para o engajamento em ações voluntárias, no sentido de diminuição dos riscos do negócio e efetiva contribuição setorial na eliminação de problemas sociais que impactam negativamente os indicadores da cadeia.